Mediação de Leitura e a Oralidade

Com a popularidade dos contadores de histórias e da mediação de leitura, que ganharam importância concomitantemente nos últimos 10 anos, o papel de ambos tem se confundido e mesmo se fundido em diversas ações educacionais, artísticas e culturais.

Mediação de Leitura
José Robson em “A Estranha História do Livro Sem o Fim”

As escolas e espaços culturais públicos, ou privados, promovem encontros e eventos literários, ora com mediadores que são contadores, ora com contadores que exercem papel de mediadores.

Muitas vezes sou convidado para contar histórias em projetos de leitura de colégios, finalizando o trabalho bimestral, ou mesmo anual da escola, com uma contação de história, invertendo a dinâmica em que se conta para depois ler. Outras vezes, conto histórias em livrarias, em que arrumam o espaço com alguns conjuntos de livros que desejam que fiquem em evidência durante o evento, quase sempre com motivos de contato com a história contada.

Nos dois casos, sou contador de histórias durante o evento. Atuo com as características do meu personagem e narrando alguma história do meu repertório.

Já em alguns casos, sou chamado para fazer um bate-papo com alunos,  ou mesmo educadores, sobre a arte de contar histórias. Uma aula espetáculo sobre a oralidade. Nesses casos, não há um livro, nem algum tema específico, mas a arte de contar história em si. Nesses eventos, atuo mais próximo de um mediador de leitura, apresentando títulos e as fontes em que busco minhas próprias histórias, ora narrando, ora lendo, ora apresentando fisicamente o livro em que encontrei tal e qual conto, lenda, ou causo.

A MEDIAÇÃO DE LEITURA

A atividade de facilitar o acesso aos livros e outras plataformas textuais, além de auxiliar na própria leitura e entendimento do texto e contexto, é classificada como mediação de leitura. Em geral, com exceções, o mediador, aquele que serve de ponte entre o leitor e o livro, é um educador, ou agente cultural, mesmo que também seja um artista, escritor, ator… Este se distingue de um contador de histórias por ofício, por identidade sociocultural e, principalmente pela distinção da ação: promover e ser um facilitador do encontro entre leitores, potenciais leitores e a plataforma de leitura.

Já o contador de histórias leva a palavra narrada, nem sempre com o interesse gramatical e literal nos textos e histórias, partindo explicitamente e intencionalmente da oralidade, da empatia narrativa e do espetáculo pessoal na apresentação da história. Diferentemente do mediador, que se coloca a serviço da história literal, seja em livros, revistas e meios escritos, o narrador é o próprio agente e meio, é a própria plataforma em que a literatura, de forma sonora, oral e performática, é apresentada ao ouvinte. O narrador pode citar e até apresentar as suas fontes, mas ainda assim, o narrador volta toda a atenção literária para sua oralidade, apresentando aos ouvintes a história conforme sua interpretação. Tem o papel de difusor e enriquecimento cultural, entretenimento cênico e propõe, nem sempre de forma proposital e consciente, o entendimento social de uma comunidade através das histórias. O mediador aponta a literatura como forma desse entendimento e conhecimento.

Assim, temos ações que dão corpo e função a cada atuação. Ambos podem utilizar, e utilizam das mesmas ferramentas, mas é a forma com que cada ferramenta é usada que distingue um personagem do outro.

OFICINAS DE LEITURA

As oficinas de leitura e debates são muito usadas pelos mediadores de leitura. Nas oficinas, principalmente, elementos cênicos, ou técnicos, como a música e figurinos são usados. Podemos dizer que são limiares entre a dramatização, a contação de história e a mediação de leitura. Por quanto à dramatização, já adentrando na área teatral, necessita de um enredo dramatizado, com a definição de espaço cênico, plateia e personagens, a contação de história também compartilha dessa necessidade, centrada na oralidade, bem como a mediação de leitura. No caso da mediação, a plateia é vista como leitores, o personagem (no caso de estar caracterizado, em oficinas, principalmente), é o mediador, recortado do contexto da literatura apresentada, e o espaço cênico, neste caso, apesar do desempenho do mediador, o próprio texto. Assim, o teatro, a mediação e a narração usam dos mesmos recursos de formas distintas. O teatro dá importância a “Cena”, a narração à “oralidade” e a mediação a “literatura”.

Outros eventos apostam na realização de oficinas. Podem ser de construção de livros, ou de algum objeto ou tema que é apresentado em parte da leitura, ou história narrada. A construção de algo já adentra em outras formas de manifestação artística, de acordo com o resultado plástico, visual, sonoro, estético, ou conceito. Histórias que terminam com oficinas, ou oficinas que terminam com histórias, narradas ou lidas. Dependendo dos objetivos dessa oficina, veremos que ela estará mais ligada a mediação da leitura, ou da narração de histórias.

Quando encontramos um evento que nos chama para ouvir uma história a partir da criação de algo, ou para criar algo, a partir do contato com alguma história, o objetivo é o mais importante. Vários centros comerciais usam dessa estratégia para atrair público em dias comemorativos de maior venda, como os dias dos pais, semana da criança.

E muitos contadores aguardam essas datas ansiosamente. Nesses casos, a construção de algo é tão, ou mais importante, para o contratante, pois que é o mote para que o público escolha seu centro de compras e leve uma “lembrança” gerando uma empatia  e fortalecendo sua marca. A contação de história passa a ser um mediador entre a plateia e a marca. E muitas contações, para chamar a atenção, não somente do público, mas também do contratante, com o interesse de ser novamente contratado em eventos similares e futuros, adentram no espaço das demais artes, principalmente no teatro e na música. Criar um impacto cênico e visual passa a ser mais importante do que a própria história para a contação comercial, que se aproxima muito mais de uma apresentação teatral, ou musical, do que a narração de história.

A mediação de leitura também aposta em oficinas, algumas construindo algo, como livros artesanais, um elemento da história, como castelo, ou um personagem em forma de colagens e dobraduras. É nesse momento que a oficina de uma contação de história e uma oficina de mediação de leitura se distinguem de forma clara. A mediação de leitura busca o entendimento da literatura através do conhecimento de algum elemento da história, ou que influenciou o autor a escrevê-la. A oficina estará a serviço da literatura.

 Já a contação de história, que se põe a serviço da própria oficina, buscará propor alguma construção – na maioria das vezes de um personagem –  para  reforçar a história, ou a criação de um ambiente lúdico entre quem constrói e o objeto construído que, partindo da história, toma contornos e caminhos independentes. Mesmo que o oficineiro diga que aquele é o personagem da história, que batize com o nome do personagem da história, aquele personagem terá novas aventuras, descolando-se da história principal, sem que perca sua memória. Contudo,  será independente para viver novos enredos, com ou sem a sua personalidade advinda da história original.

A LEITURA DRAMATIZADA

Alguns eventos culturais, principalmente em livrarias, bibliotecas e encontros temáticos, como em seminários, lançam mão do uso de leituras dramáticas de um livro, seja ele de um autor homenageado, ou de um movimento literário prestigiado naquele momento. As leituras dramáticas são um recurso muito usado pelos atores nos trabalhos pré-montagens teatrais para o entendimento do texto, contexto e intenções do escritor (autor), diretor e de cada cena e personagens. Nessas leituras dramáticas buscam conhecer as características, personalidades e razões de cada acontecimento na história. Desta forma, as inflexões que realizam durante a leitura, que são exploradas de formas diferentes a cada leitura até chegar num ponto mediano, buscam a sonoridade dramática da intenção da cena, vestida da personalidade do personagem.

Nas leituras dramáticas, quem lê emprega a narração, normalmente, do ponto de vista que o autor escreve, ou do personagem que conta a história, ou na primeira, ou na terceira pessoa. Toda sua atenção se concentra no narrar e na expressão facial: impostação, inflexão, expressão, respiração, ritmo e pausas. Difere-se da contação de história e da mediação de leitura, na maioria das vezes, pela falta de “interação com a plateia”, mas não de cumplicidade. Da limitação do desempenho  corporal, mas não de dramaticidade. É uma narração de história, pois é oral, mesmo que de forma literal e lida. É uma mediação de leitura, pois que provoca o interesse pela leitura. Mas não é purista nem de um, nem outro, mas sim, uma das ferramentas que podem ser usadas por ambas, de acordo com a definição de objetivos de cada uma. E claro, segunda a minha própria definição, que pode destoar de outros entendimentos.

O EDUCADOR MEDIADOR

Vemos que o educador que exerce o papel de mediador de leitura precisa ter um conhecimento dos elementos literários e uma facilidade de oratória, bons argumentos, que se desenvolvem através do conhecimento de autores, estilos e movimentos literários. Deve também ter ferramentas que facilitem a mediação, tais como conhecer o processo de construção de textos, do livro físico e plataformas virtuais, bem como conhecimentos gerais das artes e cultura para dar contexto aos livros, autores e seus enredos.

Um estudo do Instituto Ayrton Senna aponta perda econômica de R$ 151 bilhões por ano com jovens entre 15 e 17 anos fora de instituições de ensino, 1.5 milhão de jovens, empurrados por fatores socioeconômicos a saírem da escolas para o campo de trabalho. Ora, ainda são as escolas e instituições de ensino superiores os maiores difusores da literatura, mesmo que sejam textos obrigatórios, ou científicos. São mediadores institucionais de leitura. Apostar na formação de mediadores de leitura no ambiente educacional sem investir em políticas públicas para a diminuição da evasão escolar, fragiliza a criação de um público leitor espontâneo, prolongando e acentuando as perdas econômicas e empobrecimento cultural.

Mas nem sempre o mediador necessita, ou terá esse aprofundamento literário que o educador busca.  A maioria dos jovens até os 13 anos precisam de um modelo para adentrar no mundo da leitura. Cerca de 24% da população lê algum tipo de literatura, mas, segundo o Instituto Pró-Livro, somente 25% desse universo de leitores realizam a leitura por prazer, como uma atividade habitual e escolha de interesse e enriquecimento cultural, ou seja, 75% dos leitores habituais leem por obrigação escolar. Nesse sentido, são os pais, parentes e professores (não somente os de literatura e língua portuguesa), que exercem maior influência pelo interesse nos livros e leitura espontânea. Esses atuam livremente e fora dos ambientes literários, longe  das bibliotecas, livrarias e instituições de ensino.

A MEDIAÇÃO AMOROSA ESPONTÂNEA

Lembro-me que ficava na sala da minha tia “Nega” sempre que íamos visitar familiares que moravam na mesma avenida, na Av. Luciano Frezato, no bairro do Mogilar, em Mogi das Cruzes, SP. Parte da minha infância foi ali. Aprendi a andar de bicicleta ali e ali, no final da via sem saída, onde tem um campo de futebol, assisti a primeira partida entre dois times uniformizados, entre palavrões, gritos das torcidas e, claro, gols sem ser na televisão.

Toda vez que eu entrava na sala da minha tia ela abria a estante de livros e me convidava a ler um deles e partia para a cozinha. Então, eu fazia um amontoado de títulos no chão e ia escolhendo. Tinha um que se chamava “O Menino do Dedo Verde” que eu nunca escolhia, e não escolheria até que uma mediação acontecesse. E aconteceu. Perguntou-me ela um dia:

– E esse você não gostou?

_ Não, prefiro esse aqui- e mostrei um chamado “Coração de Vidro”. Não o tinha visto nas minhas visitas anteriores ainda.

– Depois de ler esse que você gostou, olha esse aqui. É sobre um menino que acaba com uma guerra apenas com “um dedo”.

O Menino do Dedo Verde /Portugal: O Menino do Polegar Verde) é um livro infanto-juvenil escrito por Maurice Druon em 1957

Parei por instantes de olhar os livros no chão e prestei atenção nela, que empunhou aquele livro e continuou.

– Tem gente que mete o dedo onde não é chamado. Uns brigam por qualquer coisa, outros só sabem destruir o que os outros constroem. Tem gente podre de rico que tem o dedo podre também, mas esse menino… Ele mudou a vida de uma cidade inteira só com esse dedo  –  e ficou vesga olhando o dedo indicador de pertinho.

As palavras eram essas, com pequenas alterações que não me recordo completamente. Sei apenas que li o “Coração de Vidro” em outra visita. E ainda escuto os passos da tia “Nega” nos tacos do chão, saindo da sala enquanto eu abria o livro  “O Menino do Dedo Verde” a espera dos bolinhos de chuva.

Nesse contexto, e acredito mesmo que deveria ser em todos, tanto o mediador de leitura quanto o contador de histórias deveria ter uma amorosa relação com os livros e uma paixão contagiante com a literatura. É de comum acordo em todos os campos de estudo que ensinamos e promovemos melhor aquilo que é essencial para nós mesmos, o que amamos e cultivamos diariamente com dedicação e como prática calorosa.

Os mediadores de leitura não tradicionais apresentam elementos literários espontaneamente, criando curiosidade e o impulso por conhecimento através da leitura. Às vezes, ao contarmos um trecho de uma história que ouvimos quando criança (e seremos narradores nesse momento também) poderá ser o impulso que o ouvinte precisava para saber mais das origens, o enredo completo, quando e como aquilo aconteceu, principalmente quando for parte de uma citação, ou trecho de algo vivenciado, ou que fez parte da biografia e história de quem conta. E os livros serão o caminho natural para esse encontro de forma mais vívida do que a pesquisa digital. Seremos ao mesmo tempo para o jovem um mediador de leitura e um narrador de história sem que estejamos num evento, ou no papel de educador profissional, mas sim, social e familiar.

O PAPEL SOCIAL DA MEDIAÇÃO DA LEITURA

Lev Vygotsky já abordava a aprendizagem mediada em seus estudos, em que o organismo aprende através  do meio e da observação dos atores no meio. Assim, o mediador se transforma, segundo Vygotsky, na própria ferramenta que facilita o encontro entre o leitor e a literatura.

Já segundo Paulo Freire, mais do que uma quantidade de textos e obras literárias propostas para a leitura dos jovens e adultos, o mais importante é a qualidade do que é lido, a afetividade e importância  daquela leitura para o indivíduo. Assim, há maior chance para o  aprofundamento nos aspectos e abordagens literários da obra. Temos aí, então, uma clara dicotomia entre as intermináveis listas para estudo e leitura por obrigação e dever elencadas pelas universidades e escolas e o genuíno interesse, a espontaneidade essencial da cultura do povo e sua regionalidade. Para Freire, a liberdade vem com o conhecimento de forma ampla, que passa pelo livro, mas não somente por ele.

Partir dos interesses e da cultura que aquece a sabedoria e dá sustentação social a um povo passa a ser, segundo Freire, essencial para o interesse da leitura e o entendimento do papel que cada um tem dentro de uma sociedade. Essa leitura é, então, ampliada cada vez mais, numa diversificação de interesses e conteúdo conforme o conhecimento e o hábito se instalam.

Vários desses pontos são importantes também ao contador de histórias que, sobretudo, e complementarmente, terá no conhecimento da cultura regional e tradição oral, suas bases para a narrativa.